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Estórias de antigamente pelas ruas e praças de Abrantes

1/04/2019 às 00:00
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Em pleno mar alto de Abrantes, o capitão Carlos Marchão, de 89 anos, comandava a tripulação com as suas estórias e experiências em redor da cidade abrantina. Homem acostumado a liderar, por ter pertencido aos escuteiros, estava na frente da fila de cerca de 40 pessoas. Numa tarde quente e agradável, para assinalar o Dia Nacional dos Centros Históricos, a Câmara Municipal convidou a população a ouvir estórias de antigamente.

Podia ter sido uma visita para turistas, mas a verdade é que quem participava também tinha memórias, talvez não tão antigas como a do senhor Carlos Marchão, que em tempos foi presidente de Junta de Freguesia. Nesta visita para gente da terra recordava-se tudo o que a cidade representa, e tudo o que já representou no passado. Dentro da tripulação tínhamos de tudo, desde mães, filhas e avôs, a senhores de bengalas e até mesmo um pequeno cão que nos acompanhava. O evento era aberto a toda a gente. À medida em que medida em que se avançava, cada vez mais caravelas de pessoas o senhor Marchão tinha para guiar.

O itinerário começou no Largo João de Deus, onde foi explicado inicialmente que naquilo que hoje em dia é uma loja, seria a Vigia, sítio aonde duas irmãs fariam a mais famosa Palha de Abrantes, com uma receita diferente daquela que é agora confecionada agora na cidade. Disso ainda muitos se recordavam, sobretudo as senhoras da Associação Crescer, que foram acompanhando, parando aqui e ali, a visita pelas praças e ruas de Abrantes.

A caminhada seguia pelas ruas da calçada, onde se fizeram comentários sobre os namoros à janela nos tempos antigos. Avista-se a Igreja de S. Vicente que, segundo o senhor Marchão, ficou inacabada porque o povo de Abrantes é demasiado humilde para acabar até um monumento da cidade. Na outra esquina, ao olhar para um outro monumento, conta estórias do tempo em que não havia casas de banho, o que causa sorrisos nos mais novos.

José Martinho Gaspar, historiador de Abrantes que conduzia a visita, mostrando fotografias de outros tempos, diz que é preciso avançar, que ainda há muitas coisas para ver. E desafia o antigo presidente da Junta de Freguesia a falar das oferendas à Santa Casa da Misericórdia, que é logo ali ao lado. Ele lembra-se bem. Sabe a data e lembra-se das politiquices em torno desse momento, no qual participou, ainda miúdo. Mas a sua vontade também é a de falar sobre o comércio da terra: “Em Abrantes havia muitas barbearias, mercearias e tabernas. Ali era tudo tabernas!”

Ao longo do passeio as conversas iam divergindo e agrupando-se pelas diversas pessoas conhecidas que se encontraram na atividade. Os assuntos divergiam, desde o que se passou na véspera na novela até à mais recente operação do pé esquerdo da D. Maria, passando pela sua disponibilidade para comprar sapatos no mercado e pela fantástica estória sobre a antiga utilidade das atuais instalações da Escola Superior de Tecnologia de Abrantes (ESTA). “Antes vinha cá muitas vezes, quase todos os dias, visitar a viúva do Marceliano, que ficava à janela”, cochichava um grupo de senhoras enquanto uma delas explicava que antigamente o edifício era uma prisão. A senhora que contava a estória, dizia que saía da escola que se encontrava ao lado da prisão para visitar a sua colega que teria sido presa por matar o marido: “Falava com o carcereiro e ele deixava-nos estar à conversa com ela da janela, tinha eu 13 anos.” As memórias claras desse tempo levam-na a confessar que se recorda melhor das estórias dessa altura do que das mais recentes. Depois de um breve descanso nos bancos do jardim em frente, o grupo segue, rua abaixo.

Seguindo para a zona do mercado, do lado direito estão as atuais casas de banho públicas, que dá origem à conversa sobre a falta de condições que haveria há muitos anos atrás. Grande parte da população de Abrantes não tinha uma casa de banho e, portanto, faziam as suas necessidades nas zonas que precisavam de fertilizante para horta. Mas o senhor Marchão acrescentou que havia um sítio, na cidade, próprio para o efeito. “Pagava-se dois tostões e davam-nos papel de jornal!”

Parado no Mercado, o grupo observa a antiga rodoviária de onde antigamente saíam as carreiras que transportavam as pessoas para as aldeias próximas, sendo que a estrada nunca foi a melhor para o interior e que, portanto, o transporte não era um assunto fácil.” Estou aqui há 30 anos, portanto, ainda não conheço tudo, mas sei que ali havia um relógio” - dizia uma senhora que fazia parte do grupo e que frequentava o café que ali havia.

De regresso ao centro, o grupo passa pelo edifício da Assembleia de Abrantes, onde “se reunia a fina flor” da terra. Ao lado, o Pelicano foi apresentando pelo Sr. Marchão como “a sala de visitas de Abrantes”. Mais à frente, as praças não tinham o nome que hoje têm: “Eram a Praça da Palha de Cima e a Praça da Palha de Baixo”. Dali saía a palha que iria, Tejo abaixo, até Lisboa. E se muitos não se lembram desses tempos, quase todos sabem da existência do ‘muro da vergonha’, nesta praça, ‘onde se davam uns beijinhos’, e do ‘muro da má-língua’, mais acima, onde se dizia mal dos outros.

Em frente ao Café Chave de Ouro conta-se que estava exposto um capacho, instrumento que era usado para moer a azeitona. A pasta criada escorregava no utensílio e assim fazia o azeite. “Grava aquilo menino, aquilo é giro de mostrar. Eu ajudei a usar aquele utensílio durante muitos aninhos” - dizia ainda a senhora que nos acompanhava a explicar tudo o que sabia sobre a cidade, como uma segunda cicerone, com as suas próprias estórias.

Apesar de pouco ter andado na escola, o Sr. Carlos Marchão chegou a ser inspetor de vendas da Cerveja Sagres, para além de presidente de Junta de Freguesia. “Isto tudo apenas com o 2º ano, sei ler e sei escrever, mas escrever já está fraquinho.” Mas memória sobre Abrantes não lhe falta. Por isso, os participantes iam-lhe perguntando e ele ia respondendo, mesmo que, às vezes, um ou outro pormenor tivesse diferentes versões. O passeio foi chegando ao seu final, momento em que surgiu, casualmente, o atual presidente da Câmara, Manuel Valamatos. Apesar do cansaço, estava prometido um baile na sede do Sporting Clube de Abrantes, com a banda F&M.

 

Texto: Pedro Santos, aluno de Comunicação Social da ESTA

Fotos: Hália Costa Santos