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Cultura

CRÓNICA: «Ver televisão e ficar esgotado», por Luís Barbosa

6/10/2020 às 00:00
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Luis Barbosa

SALPICOS DE CULTURA...

“Ver televisão e ficar esgotado”


São de facto difíceis os dias que vão correndo. Contudo, procuro que as horas que tenho de viver se tornem sempre menos arrastadas e pesadas. Por isso, eu e minha mulher vamo-nos socorrendo de companheiros de caminhada, uns mais usuais que outros que vão aparecendo momentaneamente. Também gatos, cães, árvores, arbustos e flores tornaram-se de há muito companhias presentes. Porém, como vício, a televisão tornou-se, igualmente, desde há já alguns anos, um instrumento de recurso muito usado.


Bem, sou daqueles que tiveram o privilégio de assistir à inauguração da primeira emissão de televisão realizada em Portugal, e recordo como o facto foi vivido. Ao tempo Portugal tinha uma rádio de baixa densidade, as rádios locais eram raras e se pretendíamos saber alguma coisa que no mundo se passava tínhamos de esperar o cair da noite para que, ligando a algumas emissoras estrangeiras, fossemos capazes de aceder a informações que nem nos jornais se podiam obter.


A chegada da “caixinha milagrosa”, era assim que muitos chamavam à televisão, foi então entendida como um fenómeno de grande relevância. Não apenas por que se antevia a possibilidade de desbloquear muitos dos constrangimentos sociais a que se estava sujeito, mas sobretudo porque se pensava que o acesso generalizado à tal “caixinha” iria ter repercussões sociais significativas.
Claro que tanto uma como outra coisa não aconteceu assim tão depressa e a forma generalizada como no momento atual se acede aos conteúdos transmitidos pelos écrans televisivos demorou o seu tempo. Penso mesmo que muitos dos utilizadores atuais dostelevisores não têm a mínima ideia do que este fenómeno constituiu para as novas formas de estar dos cidadãos e tenho mesmo a ideia que muitos deles julgarão que, ao referir o acontecimento, estamos a retratar algo que se terá passado em idade remota.


Foram várias as expectativas que a entrada da “caixinha milagrosa” trouxe. Uma delas radicava na ideia de que daí em diante a chamada liberdade de imprensa iria ajudar a que politicamente muita coisa mudasse, outra era a de que a partir do momento em que cada cidadão pudesse ter em casa a tal “caixa”, ficava livre do suplício de só ouvir o que uns quantos senhores entendiam dizer na estafada telefonia.
Fui dos que me entusiasmei com essas ideias, e tenho mesmo de reconhecer que o avanço na liberdade comunicativa e expressiva de que hoje a nossa sociedade goza é, em parte, fruto desse acontecimento. Porém, no momento atual vivo um sentimento algo diferente face à tal “caixinha”. Porquê? Porque pouco a pouco, fui sentindo que a sua existência em casa era motivo para criar um vício: o de carregar no botão do aparelho mal entre em casa e a porta da rua se feche, fazendo-o por vezes até antes de tirar os sapatos. Depois, para lá desse comportamento quase instintivo, logo outro se lhe segue, correr os canais em busca da notícia que mais me interessa. Por fim, deixar o aparelho ligado, mesmo que a partir de um determinado momento já nem sequer dê atenção ao que locutores e intervenientes nos programas vão dizendo.


Contudo um outro sentimento se veio instalando mais recentemente. O de que para lá de quase todos os canais dizerem e transmitirem as mesmas coisas, às vezes até à mesma hora, existe uma exploração desmedida das emoções humanas. Já possuía este sentir há algum tempo, mas agora que a pandemia do “covid” está instalada, parece-me mesmo um drama que sobre a angústia e ansiedade com que se tem de viver o dia a dia, se seja confrontado, não apenas com notícias que são repetidas à exaustão, mas sobretudo com transmissões deditos “diretos” que em nada aduzem mais à notícia já transmitida.
Em recente encontro de formação de jornalistas onde estive presente, falei deste tema e coloquei as questões anteriores. Pensava que ia ter muitos discordantes. Porém, ao invés constatei que a razão não me foi tirada, mas que em jeito de justificação, uns quantos apareceram a transmitir a ideia de acharem normais tais procedimentos. Aduziram então que o facto de existir a chamada lei das audiências justifica que se tenha estabelecido entre os canais televisivos uma concorrência desmedida, que faz com que mais importante que ser agente de desenvolvimento cultural e social,se esteja interessado no número de vezes que os consumidores carregam no botão para ligar ao sistema a tal “caixinha milagrosa
Claro que não quero aqui ser sensor de quem quer que seja, era o que faltava, e até perfilho a ideia de que, se procurarmos, encontramos bom jornalismo, bons jornalistas e até boa comunicação televisiva.


Porém, caros amigos, a verdade é que pensando nestas coisas, passei a carregar muito menos intuitivamente no botãozinho do televisor que tenho lá em casa, e mesmo quando o faço, tiro primeiro os sapatos, depois sento-me a descansar das fadigas do dia a dia e por fim, apelando à calma e serenidade, lá vou por vezes escolher um ou outro programa que penso ser de qualidade.


Despeço-me com amizade,


Luís Barbosa*


*Investigador em psicologia e ciências da educação
SALPICOS DE CULTURA, uma parceria com a Associação Internacional de Estudos Sobre a Mente e o Pensamento (AIEMP)