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CRÓNICA: «Os modos de ser dos animais», por Luís Barbosa

9/11/2020 às 12:00
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SALPICOS DE CULTURA….

 

 “Os modos de ser dos animais”

Agora, depois de ter nascido e habitado durante muitos anos a cidade, vivo numa aldeia e tenho por companhia, para além de minha mulher, a floresta, e uns quantos animais. Gosto de tudo o que me rodeia, e em particular de ter cães e gatos bem tratados. Por isso, sujeito o que faz parte da floresta aos tratos obrigatórios, e os animais aos cuidados que a ciência veterinária vai aconselhando. É uma relação algo interessante, porque enquanto fui rapaz da cidade de Lisboa, nunca dei por mim a ser tão chegadoaos diversos elementos naturais que hoje me rodeiam, e de forma muito particular aos cães e gatos.

Viver na aldeia é, de facto, muito diferente de ser habitante de Lisboa e morar lá para os lados do bairro da Graça, bem perto do Castelo de S. Jorge. Claro que por lá também havia e háárvores, flores e animais, mas enquanto rapaz novo, os apelos aos sentidos orientavam-me a atenção para outros horizontes.Confesso que dedicar agora mais atenção às árvores e aos animais,é coisa que veio a exigir de mim um certo tempo de habituação. Porém, pouco a pouco, e há medida que me fui instalando em definitivo na aldeia, alguns fenómenos foram-se tornando para mim muito peculiares.

Os ciclos de vida de arbustos, plantas, árvores, flores e frutos cedo me chamaram a atenção, e a forma como certos cães, gatos e pássaros, se relacionavam comigo, foi-me servindo de âncora para o bem-estar de que hoje gozo.Claro que estou muito longe de me poder dizer um homem do campo, semelhante a muitos outros que comigo se cruzam. Mas alguns fenómenos tornaram-se, pouco a pouco, muito apelativos. Retenho bem na mente que aminha educação foi marcada pela dicotomia entre o amor que a minha mãe me dedicavae, na inversa,pelo medo que ela tinha de que eu tocasse nalgum cão ou gato, não fosse, por via disso, acabar por contrair alguma doença.

Ora, o que hoje se passa comigo é que, justamente, se toco com particular carinho nas árvores, flores e frutos que me rodeiam, e se dispenso particular atenção aos cães e gatos que me fazem companhia, quase sinto que a pertença ao universo é uma bênção. Por via deste sentir, tenho refletido muito sobre a particularidade de alguns comportamentos que passei a ter para com os elementos que acima referi, mas sobretudo nos que, na inversa, os mesmos projetam sobre mim, e não é apenas a questão afetiva que me motiva, mas a constatação de fenómenos, que sendo uma evidência, verifico serem ainda para alguns humanos algo que desvalorizam.

Nesta matéria, o meu companheiro de reflexões tem sido Karl Popper, homem de grande amplitude de pensamento que dedicou muito do seu tempo a estudar as questões da evolução, tendo até desenvolvido aquilo a que veio a chamar “Teoria Evolutiva do Conhecimento”. As Edições 70 publicaram esta sua teoria, em 1999, numa obra que faz parte da Biblioteca de Filosofia Contemporânea, e eu, que já tinha lido, e até discutido com outros, os princípios do que Popper escreveu, dei comigo, agora,a tropeçar num parágrafo em que o autor, apresentando o conteúdo de uma conferência que produziu, deixou escrito que no encontro não iria, nem falar do que ele entendia ser o conhecimento, nem, tão pouco, dizer como achava que o mesmo se conseguia. Antes disse, e escreveu, que orientaria a sua intervenção para o facto de achar que “os animais podem conhecer alguma coisa, e que até podem possuir conhecimento”.

Bem, se há alguns anos, quando li pela primeira vez o livro, não fui assim tão sensível a esta proposição de Karl Popper, hoje, releio e reflito muito amiúde no que o autor deixou expresso. Sobretudo quando, referindo-se aos animais, aduziu o que passo a citar:

“Por exemplo, um cão pode saber que o dono volta para casa, nos dias úteis, por volta das 6 horas da tarde, e o comportamento do cão pode dar muitas indicações, óbvias para os amigos, de que ele está à espera do dono a essa hora” (pág. 84)

Bem, pode perguntar-se porque razão tropecei eu nesta ideia do autor? A questão é simples. É que enquanto andei por Lisboa, lá bem longe dos contextos campesinos, nunca tive a possibilidade de verificar que de facto, hoje, os cães que tenho em casa, mal pressentem o carro a chegar à rua onde habito, perfilam-se em linha, perto do portão,e aguardam que um olhar intencional do dono, ou uma festa, mesmo que rápida, aconteça. Isto é quando chego. Mas atenção, porque quando saio de manhã, mesmo que cedo, este comportamento repete-se.Banalidades da vida dirão muitos. Porém, atenção, porque quando Karl Popper fez a conferência onde proferiu o que acima deixo escrito, teve o cuidado de advertir a plateia dizendo: “Existem, evidentemente, algumas pessoas que negariam a minha banal proposição. Poderão talvez dizer que, ao atribuir conhecimento aos cães, estou meramente a usar uma metáfora e um antropomorfismo descarado.”.

Ao tempo não acompanhei com regularidade as discussões suscitadas pela afirmação de Popper. Porém, uma coisa constato hoje. Os meus cães, parece que estão bem do lado da afirmação que o mesmo fez de que os animais podem mesmo possuir conhecimento. Por mim fico por aqui, não sem deixar dito que vou continuar a estudar e a refletir sobre esta minha dupla relação com o universo, e em particular com os animais.

Despeço-me com amizade,
Luís Barbosa*

*Investigador em psicologia e ciências da educação
SALPICOS DE CULTURA, uma parceria com a Associação Internacional de Estudos Sobre a Mente e o Pensamento (AIEMP)