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Cultura

CRÓNICA: «A língua e sua universalidade» por Luís Barbosa

15/06/2020 às 00:00
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Luis Barbosa

SALPICOS DE CULTURA…..

A Língua e sua universalidade

Um dos acontecimentos que muita satisfação me causou foi, não apenas o reconhecimento da língua portuguesa como a sétima mais falada no planeta, mas também o facto de ser de utilização direta e obrigatória em muitas das organizações mundiais.É um reconhecimento de todo bem merecido que certamente trará benefícios acrescidos. De facto, esta coisa de se aceitar que os outros, porque têm linguagens diferentes, devem ser mais ou menos reconhecidos, tem sido, diga-se a verdade, motivo para justificar poderes, que se algumas vezes resultam em benefícios, noutros casos redundam em fortes constrangimentos.

Comigo aconteceram duas situações que na altura em que ocorreram me trouxeram fortes apreensões. A primeira deu-se quando, tendo optado por estudar em França, tive de reconhecer que para fazer lá os meus estudos tinha não só de saber falar bem o francês, como o tinha de aprender a fazer utilizando três formas de ser expresso.Uma era aquela que nos domínios científicos a academia utilizava, outra a forma como a língua se falava ou escrevia correntemente e outraa do chamado francês da rua. Bem, tive sorte, porque começando a lidar com professores simpáticos lá me foram aceitando um linguajar que muitas vezes mais não era que um francês aportuguesado. A segunda vez que as coisas da língua se tornaram embaraçosas deu-se muito mais tarde, e os embaraços foram mais formais e políticos. Foi o momento em que trabalhado na universidade,a instituição se viu confrontada com a concorrência de universidades espanholas, que se lembraram de aceitar que alunos portugueses nelas fizessem os seus percursos académicos utilizando muitas vezes uma linguagem mais portuguesa que espanhola. Claro que o interessante aqui é sublinhar que se de facto não formos aceitando os linguajares diferenciados, o bloqueio relacional entre os humanos aparece e fixa-se sem solução. Porém, também é certo que se não aceitarmos o facto que certas línguas, porque num determinado momento se expandem mais que outras,passando a ter uso mais corrente, acabamos na mesma bloqueados.Penso então que devemos estar gratos a todos os que têm feito esforços para que o reconhecimento do peso da língua portuguesa no mundo seja uma realidade. Na nossa história temos bons exemplos que comprovam que mesmo portugueses ilustres tenham dedicado muito do seu tempo às questões dalíngua, procurando sobretudo a relação que possa existir entre a forma como é dita e os sentimentos que por ela poderão ser expressos.

Em conversas diversas ouço muitas vezes dizer que o português contém expressões que noutras partes do mundo não são sentidas, e não raro penso que a forma como alguns se expressam em português não revela senão tentativas de exercer o poder sobre os seus semelhantes. Mas a questão não é de todo nova.Lembrei-me então de voltar a ler uma obra que em outros tempos foi até objeto obrigatório de estudo. Refiro-me ao “Leal Conselheiro”, escrita pelo rei D. Duarte. O livro que mais recentemente venho utilizando foi editado em 1991, pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda, na Coleção Pensamento Português, e tem um prefácio escrito por Afonso Botelho.De facto, D. Duarte já no seu tempo procurava na língua portuguesa as expressões que pudessem dar vida aos sentires mais subtis de uma forma típica do português se afirmar com dimensão universal. É o próprio autor do prefácio que disso nos dá contaa páginas XI, passo a citar:“A autonomia (da língua) gera unidade.

No plano metafísico, o sentido da autonomia, aplicado na escrita de Dom Duarte, é o oposto do sentido             que utilizamos na política, potenciando a luta contra a unidade do poder central. A autonomia que o Rei-            filósofo empresta aos principais filosofemas analisados nos seus livros e, sobretudo, ao que abre o             período do pensamento português universalizante, é a da língua, a do modo de ser lusitano e a relação             intrínseca com o absoluto ou com a unidade divina.”

Bem, sem fazer juízos de valor centremos a atenção no que é escrito. Porém tenhamos também em conta que o próprio Rei Dom Duarte diz no seu livro, que o entendimento da língua, para ser bem compreendido, exige sete exercícios: no primeiro que se aprenda a razão pela qual entendemos e aprendemos, no segundo exige-se que se saiba relembrar o que sabemos, no terceiro aconselha a que aprendamos a ajuizar bem o que se diz e escreve, no quarto entende que se deve aprender a saber escolher tanto o que se diz, como o que se escreve, no quinto que se aprenda a ter a preocupação de que falar não é dizer qualquer coisa da boca para fora, no sexto propõe que não sejamos preguiçosos, e ao invés digamos, ou escrevamos no tempo em que a coisa deve ser dita ou escrita, no sétimo aconselha a que se aprenda a ser perseverante ao afirmarmos o que dizemos ou escrevemos.Então o que se pode dizer é que afirmar uma língua com autonomia não é exercício fácil, e mesmo que se pense que podemos ser trapalhões a utilizá-la, tenha-se em conta que torná-la instrumento de utilização universal é desígnio que exige muita perseverança e firmeza, e isso já o Rei-filósofo Dom Duarte bem o sabia.

Despeço-me com amizade,

Luís Barbosa*

*Investigador em psicologia e ciências da educação
SALPICOS DE CULTURA, uma parceria com a Associação Internacional de Estudos Sobre a Mente e o Pensamento (AIEMP)